[Trigger Warning (aviso de conteúdo possivelmente incômodo): relato sobre distúrbios alimentares, bullying, gordofobia.]
É de se esperar que muita gente esteja feliz com o fato de hoje ser o Dia Internacional Sem Dieta. Em partes, também estou, em especial por saber que existem pessoas que se importam com essa causa o suficiente para reservar um dia só pra ela. Claro que o meu ideal seria o de que todo dia fosse para questionarmos o que estamos fazendo com nossos corpos e nossas mentes, ou, melhor ainda, o que nos ensinam a fazer conosco. Mas não é assim e, mesmo hoje, existem milhões de pessoas que vão chorar ao se olhar no espelho, e outras tantas que vão pular uma refeição. Meu coração -como sobrevivente de uma infância traumática e um transtorno alimentar -está com essas pessoas.
A minha história não é especial. Eu era uma criança que não era magra. Eu não era gorda, mas eu não me lembro de jamais me sentir confortável na minha própria pele, sempre me comparando com outras meninas, sempre observando o tamanho das partes do corpo delas e o tamanho das minhas. Mas num padrão de beleza facista, (que já atingia crianças, vejam só) eu era gorda. Eu era um “caminhão da Vale”. Eu era uma baleia, porca (ou, em inglês, “pig”, como a galera do curso de inglês aprendeu a me chamar), nojenta. Eu nunca ia ter um namorado. Eu nunca iria poder usar as roupas que queria. Minha mãe me disse, aos meus 10 anos, que se eu tivesse 15, ela diria que eu estava grávida (por causa da barriga). Me ensinaram a çontar calorias bem novinha, e comida virou um sinônimo de culpa para mim. Parece horrível para quem não viveu isso… e, se você que está lendo, é uma das pessoas que nunca viveu esse pesadelo (quando sequer contei tudo), eu sinto informar que não sou especial por isso. Existem muitas pessoas como eu por aí, que ouviram as mesma coisas, ou muito pior. Somos muitxs, infelizmente.
Eu não me lembro da primeira vez que comecei com comportamentos bulímicos, mas eu era nova demais para sequer estar preocupada com algo além de brincar e estudar. acho que sequer havia menstruado. Não quero entrar em detalhes sobre isso, mas o que importa é que eu sobrevivi. Não falo isso querendo dizer que sou alguém que quase morreu por causa desse transtorno alimentar e que tem uma foto de “antes” e “depois”. Não tenho nada disso, não é a minha experiência.
O que eu tenho da minha vida, como alguém que foi vítima de um padrão de beleza que me sufocou e me drenou, é que eu estou aqui, nesse 6 de Maio, Dia Internacional Sem Dieta. E que estarei aqui a amanhã, com as mesmas dores de quando eu tinha 13 anos e chorava na frente do espelho, porque o mundo não me permite deixar pra trás a insegurança de não ser uma mulher de revista, de não ser a minha prima, a minha colega de sala… de não ser qualquer outra pessoa que não seja a baleia da 4ª série, ou do 2º período da faculdade. De não ser, enfim, magra.
Aprendi com o feminismo e outras lutas que não é normal viver o que vivemos. Que não é justo e que temos o direito de dizer “não” a padrões de beleza que nos oprimem e magoam. Eu decidi dizer “não”, mas não foi há um ano e meio, quando procurei ajuda médica, e nem hoje que me libertei. Talvez eu nunca me liberte, mas eu espero que outras pessoas não ouçam que ninguém vai amá-las por serem gordas. Eu espero que comprar um jeans não seja doloroso, e que elas repitam o almoço sem medo.
Acredito que isso seja possível. Um dia de cada vez. Uma dieta a menos de cada vez.
Nem sempre damos conta de lutar porque somos humanos. Existem dias em que um discurso body-positive não me traz nada de bom, porque minhas cicatrizes estão abertas demais, e esses são dias difíceis. E está tudo bem em ter dias assim, porque o apoio não é muito grande. Mas existem outros dias em que ver a confiança e a luta de outras pessoas – em especial outras mulheres – me dá força e um bocado de esperança. Espero que, dia a após dia, e, aos trancos e barrancos, a minha experiência e a de tanta gente seja, de fato, passado.
(Essa é só a minha experiência e como decidi encarar essa situação.)
por Carol Marques Lage
contato: ponycase@gmail.com