Traduzido de http://transdykeprivilege.tumblr.com/post/71341524775/sex-is-biological-go-open-a-biology
Anônimo perguntou:
sexo é biológico??????????????? vá abrir um livro de biologia?????????????????? não é uma construção social ‘cê ‘tá pensando em gênero????????????
eu espero que a superabundância de interrogações seja um indicativo de que você sabe em algum nível do tamanho da besteira que você disse.
[alerta de conteúdo: discussão sobre genitália e órgãos internos]
primeiro de tudo, quando você diz “sexo” eu presumo que você está falando no que é chamado de “sexo biológico”, “dimorfismo sexual”, ou “diferenças sexuais.” especificamente o que você está tentando dizer ou implicar é a existência material de duas categorias de corpos: masculinos e femininos. vou supor que você está se referindo a cromossomos já que essa é considerada a base ‘mais fundamental’ do sexo por pessoas transmisóginas desde pelo menos 1979.
um cromossomo sexual é uma mancha com uma aparência específica que aparece em um cariótipo, ou um teste envolvendo o tingimento e a visualização microscópica de cromossomos. cromossomos são pequenas manchas de gosma dobrada que se bem desenrolada vira uma cadeia de DNA—que é uma cadeia de pares de bases nitrogenadas (guanina e citosina, adenina e timina). o que você vai encontrar lá são histonas em que a cromatina (material genético um pouco estendido) está enrolada. adicionalmente, você vai achar metilação, e toda outra forma de pequenos químicos e partículas porque adivinha só? o DNA não é um sistema de codificação linear. o DNA codifica em trechos—geralmente trios que são lidos como determinados aminoácidos, que então se juntam e formam as peças pra formar proteínas. o problema de codificar em trios é que pode se tornar super complexo. então
AGGCTTATTAGGCTCTA
pode, por exemplo, ser codificado ao mesmo tempo como
AGG CTT ATT AGG CTC ta
e
a GGC TTA TTA GGC TCT a
e
ag GCT TAT TAG GCT CTA
só pra citar um caso. por isso existem sinais indicando onde a codificação deve começar, mas esses sinais podem se mover, ou ligados e desligados. essa é uma das funções da metilação—ela pode ligar e desligar os indicativos de onde começar a codificação da cadeia. a metilação de qualquer parte de um filamento de DNA pode ser ativada por todo tipo de coisa. um estudo encontrou relação as taxas de diabetes e níveis de estresse nas avós das pessoas com diabetes—ou seja, o estresse se relacionava com diabetes duas gerações depois. só pra dar uma ideia do grau de complexidade da codificação.
e as complexidades continuam a cada nível. As proteínas que são formadas por sequências de DNA podem se juntar de formas diferentes dependendo da composição química do meio. o DNA em si—um objeto tridimensional no mesmo meio—pode interagir fisicamente com as proteínas ou consigo mesmo. mas também lembre-se de que estamos falando de um gosma química sujeita a condições ambientais, que incluem todas as formas de mutações. algumas vezes a coisa desanda (não vou falar que ‘dá errado’ porque isso presume que as mutações são ‘ruins’ o que é besteira, elas são necessárias para a adaptabilidade genética—e também porque isso significa aplicar noções antropocêntricas de funcionalidade, de comportamento ‘certo’ ou ‘errado’, da gosma) e AGG CTT ATT perde uma letra e vira AGC TTA tt (o que é conhecido como mutação por mudança da matriz de leitura—ainda existem outras coisas como mutações pontuais). além, as coisas ficam estranhas quando o DNA está sendo replicado—não é um processo perfeito de leitura, é um monte de reações químicas flutuando em gosma. e acontece milhões de vezes, então a probabilidade de que as coisas deem errado de diversas formas é alta.
mas até em níveis além da codificação de DNA, para os cromossomos, as coisas são confusas. porque os cromossomos se juntam a partir de uma distribuição mais livre da gosma quando a célula está se dividindo, e as coisas podem dar errado nesse processo—ficar no lugar errado, ficar embaralhado no outro lado, etc. nesse sentido, existe um processo chamado crossing over que ocorre na replicação da célula durante a metáfase (enquanto os cromossomos estão emparelhados no centro da célula antes da divisão do núcleo) em que os cromossomos trocam pedaços entre si sem nenhum motivo em especial. e também é bem aleatório onde acontece, o que quer dizer que códigos importantes podem ser cortados ao meio, ou novos códigos podem ser criados.
tudo leva ao fato de que é incrivelmente improvável esperar algum tipo de distribuição meio a meio significativa entre “cromossomos XX” e “cromossomos XY”. o que serve pra realidade, porque na realidade nós observamos toda forma de variação, exatamente como seria de se esperar. agora, que acontece quando tem variação? na maior parte, as coisas só acontecem. são só células. elas fazem a coisa delas, criam pequenos órgãos, replicam pra que os órgãos cresçam e fiquem mais específicos, etc. então talvez agora você comece a ver por que esperar que elas se comportem de forma organizada em dois padrões é completamente incorreto? ou por que é que no mundo real observamos uma variedade de corpos humanos além de só Barbies XX e Kens XY? mas mesmo olhando além disso, o que está de fato acontecendo com o famoso sistema reprodutor? Bom, algumas dessas células têm a habilidade de gerar gametas—meio como se fossem meias células— que podem se unir a outros gametas e virar um outro aglomerado de órgãos. isso é o que a fertilização e a gravidez são. é tudo que ‘tá envolvido. genericamente falando, um tipo de gametas aparecerá em corpos de pessoas nas quais as células tendem a ter a gosma que aparece de uma certa forma no cariótipo, enquanto que o outro tipo de gametas aparecerá em corpos de pessoas em que as células tendem a ter a gosma que aparece de uma forma diferente no cariótipo, com um monte de variações e possibilidade das coisas serem interrompidas. então por que é que isso sequer importa pra nós? por que é que eu estou aqui às 4 da manhã da noite de natal com uma caixa de cheezits e uma taça de vinho respondendo porcaria que gente anônima manda sobre isso? porque a partir dessa tendência genérica de corpos as pessoas construíram a noção de sexo.
o patriarcado, em sua base, é um sistema de exploração econômica que consiste em um grupo de pessoas recebendo trabalho que tem valor, e outro grupo de pessoas recebendo trabalho que não tem valor. isso foi mapeado em dois grupos gerais de pessoas, aquelas que tendem a ter um tipo de gameta e aquelas que tendem a ter outro tipo, e as pessoas que vieram com a ideia de que o seu trabalho tinha valor eram ‘masculinos’, ‘homens’, etc, enquanto aquelas que foram forçadas a ser objeto de exploração e violência eram ‘femininas’, ‘mulheres’, etc. como parte de valorizar o trabalho masculino, os homens construíram uma explicação para a iniquidade que eles alegavam derivar da natureza da realidade física. especificamente a noção das ‘diferenças sexuais’, ou a tendência das pessoas de produzirem diferentes variedades de gametas. para melhor justificar e valorizar a exploração das mulheres, os homens construíram toda a noção de indivíduo ao redor disso, um ideal que para eles aconteceu de estar contido em um órgão que a maioria deles usava para distribuir gametas. e para justificar a violência que eles estavam fazendo, argumentaram que existiam naturalmente apenas duas categorias de pessoas, agrupadas com base no trabalho realizado/posição durante o sexo/produção de gameta/etc (todas essas coisas foram unificadas e receberam ênfases diferentes ao longo do tempo, ajudando a mistificar a falsidade da distinção).
a noção de que certos tipos de órgãos correlacionam certos tipos de comportamento, certos padrões econômicos, etc, é um produto de um sistema social de opressão. NÃO é fundada em qualquer tipo de ‘fato biológico’ porque antes de qualquer coisa ‘fato biológico’ não existe. um órgão não é um significante exceto no contexto de uma ‘biologia’ socialmente construída que é especificamente construída como uma justificativa do patriarcado. quase literalmente. eu trabalhei com biologistas (sim, anon, acontece de eu já ter de fato aberto um livro de biologia algumas vezes na minha vida) e uma coisa que eu posso dizer definitivamente é que, assim como a maioria dos cientistas, não pensam profundamente em como os tipos de questão que levantam e as formas de interpretar os dados são estruturados pelo mundo. melhor das hipóteses fizeram um ou outro curso obrigatório de bioética na graduação. então quando tentam interpretar dados matemáticos estão fazendo de uma forma que já presume a questão real como respondida. encontram dimorfismo sexual não porque está nos resultados dos dados, mas porque estava pressuposto na hora que levantaram os problemas—se você perguntar ‘qual sexo é melhor em matemática?’ você nunca vai encontrar evidência de que ‘sexo’ é uma construção sem sentido. isso é o que muito da ‘verdade científica’ é, de fato—as coisas que já eram aceitas quando as pessoas fizeram perguntas mais complexas, e que só foram descartadas, se é que foram, quando todas as respostas a todas as perguntas complicadas continuamente revelaram algo que enfraqueceu o modelo anterior (que, por acaso, está acontecendo agora com a noção de sexo—isso mesmo, até cientistas patriarcais estão chegando à consciência da tremenda besteira que isso é, embora fazendo o maior desvio possível e ainda assim causando o máximo de dano que puderem enquanto isso).
mas o que podemos ver disso tudo é que gênero precede sexo. gênero é uma forma de organizar a esfera social, e dados biológicos não são dessa forma. gênero, em outras palavras, é a categoria fundamental de sexo do patriarcado. agora, pode-se dizer que vivemos em um mundo social, que nossas subjetividades são socialmente construídas, e assim para nós um órgão é um significante. claro que isso é verdade, mas é preciso que se reconheça sua natureza socialmente construída para perceber que antes de qualquer coisa não estamos analisando aqui um sistema rígido. não é simplesmente um questão que para a realidade biológica um certo cromossomo ou um certo órgão conduz a um certo lugar dentro do patriarcado, e da mesma forma não é apenas uma questão de dizer na construção social um certo cromossomo ou um certo órgão conduz a um certo lugar dentro do patriarcado. se estivermos cientes da complexidade envolvida em constituir socialmente o que basicamente é um punhado de gosma (células) que gera ou não mais gosma (bebês, pessoas, etc) como pertencimento a uma categoria binária e um tanto rígida, pode-se mais facilmente perceber como a construção social pode escorregar algumas vezes, e resultar em uma pessoa que, por exemplo, tem um tipo de órgão, e ainda assim teve sua identidade socialmente construída dentro da categoria de um tipo “diferente” de órgão (dentro das noções patriarcais que ‘diferença sexual’). de fato, só se pode falhar em reconhecer isso se partido do lugar dissimulado de assumir a priori que a pessoa em questão está enganada ou enganado, ao invés de relatando a realidade tão bem quanto a língua permite. e o uso de inversões dessa língua para relatar realidades o melhor possível é um esforço de redirecionar e ganhar controle sobre o biopoder assim como ele tem sido usado contra nós. não é nem mais e nem menos legítimo que a língua do patriarcado, exceto se a pessoa crê que que seja legítimo apoiar o patriarcado (argumento que sexo é ‘real’) ou rompendo com ele.
o que, então, é sexo? é a forma como as pessoas falam sobre punhados de gosma, e especificamente a forma como esses punhados são categorizados em dois tipo, em claro desafio à realidade, com o propósito expresso de perpetuar o patriarcado.
então, sim, sexo é biológico, no sentido que os termos do sexo são codificados no discurso de ‘biologia’, que é em si socialmente construída pelo patriarcado.
sexo é uma construção social, essa é a porra da minha palavra final nessa bosta.
NÃO me mande essa bosta ignorante de novo.